Palavra de Especialista
A EMBRIOLOGIA REFUTANDO CONCEITOS CRIACIONISTAS
Pedro Teixeira-Filho1 & Mônica Augusto Teixeira2
1 – Biólogo, Mestre em Biologia pela UERJ
2 – Bióloga, Bacharel em Biologia pela UFRJ
O debate entre criacionistas e evolucionistas vem ganhando vulto nos últimos anos, principalmente depois da publicação do livro “A Caixa Preta de Darwin”, do bioquímico Michael Behe, onde o autor criou a idéia da “complexidade irredutível”, associando-a ao “design inteligente” (DI) proposto inicialmente por William Paley em 1802. Embora suas idéias já tenham sido refutadas por vários cientistas, os criacionistas se apegaram a elas como náufragos se agarram a algo que os sustente. É compreensível tal atitude, uma vez que as idéias partiram de um homem da Ciência, não da Religião; porém, não se pode fechar os olhos para toda uma série de evidências que mostram que Behe está errado e que algo meio obscuro pode estar por trás de suas idéias.
Boa parte dos debates entre os defensores do criacionismo e os evolucionistas se refere à questão dos fósseis. Porém, neste texto iremos discutir um pouco sobre outro ponto, meio “esquecido” pelos debatedores: as evidências embriológicas da Evolução.
Os embriões dos animais desenvolvem-se de acordo com as características do grupo ao qual pertencem. Porém, há uma série de semelhanças entre embriões de espécies de grupos distintos, como as que encontramos entre os embriões dos diferentes membros do Filo Chordata, que se divide em 3 Subfilos, Urochordata (ascídeas), Cephalochordata (anfioxos) e Vertebrata (peixes, anfíbios, répteis, aves e mamíferos). As quatro apomorfias (características exclusivas) desse Filo são bastante conhecidas, mesmo por estudantes de Ensino Médio:
1) Notocorda (ou corda dorsal)
2) Fendas faringeanas (ou branquiais)
3) Cauda pós-anal
4) Tubo nervoso oco e dorsal
Entretanto, tais características não existem em todos os cordados adultos. Na verdade, com exceção do tubo nervoso, as demais podem surgir e desaparecer completamente ainda durante o desenvolvimento embrionário, como ocorre com os embriões dos seres humanos. E aí reside a questão: se não temos parentesco com os demais vertebrados e se todos foram criados ao mesmo tempo, como acreditam os criacionistas, por que então possuímos tais estruturas nos nossos embriões, se as mesmas não são funcionais?
É claro que não poderemos comparar embriões a um dado tempo de gestação se as espécies comparadas possuírem tempo de desenvolvimento diferente. Por exemplo, um embrião de uma espécie que possui tempo de gestação de 3 meses não deve ter a mesma velocidade de desenvolvimento que um embrião de outra espécie que tenha gestação de 10 meses. Se fizermos comparações desses dois embriões em uma mesma semana de desenvolvimento, provavelmente encontraremos muitas diferenças. Mas comparações de embriões em um mesmo estágio de desenvolvimento são plenamente possíveis e elas nos mostram que as semelhanças embrionárias existem. Negar a sua existência é negar o que os olhos nos mostram.
Se seguíssemos a idéia de Behe e Paley do “design inteligente”, bateríamos de frente com a questão da ausência de função em seres humanos e em outros vertebrados de algumas estruturas embrionárias, particularmente a cauda e as fendas branquiais. Se o DI fosse válido, como explicar o seu desaparecimento ainda na fase embrionária? “Provavelmente porque sua função embrionária ainda não foi descoberta”, poderão dizer os defensores do DI. O problema é que, com exceção de um único par que irá originar as tubas auditivas, as fendas branquiais não têm função nos mamíferos, nem mesmo para os aquáticos, como baleias e golfinhos. Elas se formam e se fecham. Na embriologia dos vertebrados, o estágio onde elas estão presentes é chamado de faríngula e corresponde ao período de desenvolvimento onde seus embriões possuem as maiores similaridades. Anomalias embrionárias podem levar ao não-fechamento de uma das fendas e à formação de fístulas, seios (fístulas incompletas, com abertura só interna ou só externa) ou cistos. E antes que algum criacionista cite o trabalho de Lehman sobre o desenvolvimento dos cordados*, vale ressaltar que os mamíferos realmente nunca desenvolvem brânquias, mas as fendas branquiais estão presentes mesmo assim, o que reforça ainda mais a inutilidade da sua formação. Afinal, fendas branquiais não são sinônimos de brânquias ou arcos branquiais.
E que função poderia ter uma cauda para um embrião humano dentro do útero materno? Absolutamente nenhuma, pois ele mal se movimenta quando ela está presente. Mesmo assim ela se forma, pois um embrião humano entre a 4ª e 5ª semanas de gestação tem de dez a 12 vértebras caudais, com todas as estruturas internas necessárias ao seu potencial funcionamento, como vasos sangüíneos, nervos e a própria notocorda. Na 8ª semana, contudo, já desapareceram as últimas seis vértebras caudais, ocorrendo morte celular por apoptose e ação de macrófagos, que englobam e digerem as células da cauda como fazem com microorganismos, e a 5ª vértebra ainda está se reduzindo. O que resta da nossa cauda embrionária é o osso do cóccix, resultante da fusão das quatro vértebras caudais que não desaparecem por completo. Já foi identificado um gene envolvido na formação embrionária da cauda em humanos e outros mamíferos, o gene Wnt-3a. A queda ou bloqueio da atividade desse gene induz a destruição da cauda. Quando essa queda não acontece (por uma mutação ou fator ambiental), a cauda persiste, como já relatado em alguns registros médicos de pessoas com uma pequena cauda, cujas radiografias mostram a presença de vértebras em sua estrutura.
Encontramos outros exemplos de estruturas embrionárias, diferentes das que já citamos, que também aparecem e depois são destruídas durante o desenvolvimento embrionário de outros vertebrados, como os botões de membros anteriores e posteriores em serpentes e membros posteriores em golfinhos e baleias. Sobre estas, inclusive, existem alguns registros de exemplares de diferentes espécies que apresentavam membros posteriores rudimentares, com estrutura óssea idêntica a de qualquer membro de vertebrado, com fêmur, tíbia, fíbula e metatarsianos.
Nos resta perguntar: todo esse processo de formação e desaparecimento das estruturas que citamos é algo realmente “inteligente” por parte de um “desenhista”? Gastar energia tão preciosa na formação de uma estrutura embrionária inútil que irá desaparecer é algo lógico?
A existência de um ente que tenha criado toda a vida encontrada no nosso planeta - um Desenhista Inteligente - pressupõe que não existam erros em nenhum dos passos que ocorrem na formação dos seres vivos, desde o momento da fecundação até o momento em que o embrião completa seu desenvolvimento, tornando-se um ser viável. As pessoas inclinadas a aceitar a hipótese do DI, costumam admirar-se da complexidade existente no funcionamento dos seres vivos e por observarem o ser vivo em toda a sua funcionalidade ajustada ao ambiente, pensam que mutações surgidas ao acaso teriam pequena probabilidade de alterar o conjunto das funções sem prejudicar o organismo onde ocorreram. Julgam mais improvável ainda que mutações não dirigidas possam modificar estruturas, tornando-as mais eficientes do que eram anteriormente. A análise dos fatos, porém, demonstra que na Natureza encontramos muitos casos de estruturas que com o tempo foram se modificando e ficando mais eficientes funcionalmente. Se aceitássemos a idéia de Behe, esperaríamos então que não fossem notadas estruturas desnecessárias na formação dos embriões, mas não é isso o que se vê!
Como explicar, então, a existência de tais estruturas nos nossos embriões e nos de outros vertebrados? A explicação mais lógica é a herança ancestral de genes que determinam a sua formação durante o período embrionário e que depois têm sua função substituída por outros genes que surgiram mais tarde, e que determinam o desaparecimento dessas estruturas. Em outras palavras, ocorreu uma modificação genética que provocou a mudança fenotípica, ou seja, houve evolução.
Muitos criacionistas interpretam o texto bíblico de acordo com as suas necessidades. Cada ramo da religião cristã tem as suas, e suas normas são ditadas por essa interpretação. Sua agonia acontecia quando para algumas questões feitas pelos evolucionistas eles não encontraram uma resposta bem fundamentada, e aí surgiu Behe com seu “design inteligente” com ares de Ciência, uma solução muito prática para atender às necessidades criacionistas. Prático, mas longe de ser verossímil. Sobre esse ponto, vale à pena reproduzir um trecho do texto de Julio Cesar Pieczarka, pesquisador da UFPA, para o Jornal da Ciência, da SBPC, onde o autor fala da derrota dos criacionistas nos tribunais dos Estados Unidos quando eles tentaram impedir o ensino da Evolução nas escolas:
“Diante desta nova derrota, ficou claro que os criacionistas precisavam de uma nova estratégia. Assim, o que eles precisavam era de um grupo, aparentemente independente deles, que:
a) se declarasse não criacionista (para fugir à acusação de ser um grupo religioso)
b) lutasse por legitimidade científica (para poder ser ensinado em sala de aula), legitimidade esta a ser alcançada por bem ou por mal, tentando arrombar a porta se a mesma lhes fosse fechada, acusando os cientistas de autoritários (como se legitimidade científica fosse brinde que vem em caixa de cereal)
c) tivesse por mote combater a Teoria da Evolução, unindo forças com os criacionistas assumidos toda vez que isso fosse vantajoso. Então, no fim dos anos 80 surgiu o movimento DI. Se alguém ler as mensagens postadas no JC e-mail (e nos sites do DI) dos defensores do DI, verá que o comportamento descrito acima é exatamente aquele que eles apresentam.
Estas são evidências circunstanciais. A evidência definitiva vem do documento chamado ‘The Wedge Strategy’, que estabelece as bases do movimento DI.
Este documento era interno do instituto criacionista Discovery Institute's Center for Science and Culture (CSC), mas vazou e foi publicado na internet em 2000 (Pennock, 2003**). Uma cópia pode ser encontrada na página http://www.public.asu.edu/~jmlynch/idt/wedge.html
Ele estabelece que a proposta de que os seres humanos foram criados à imagem de Deus é uma das pedras fundamentais da civilização ocidental e que esta proposta está sendo ameaçada por intelectuais materialistas, como Charles Darwin, Sigmund Freud e Karl Marx.
Assim, o CSC iria reagir, através da construção de uma alternativa às teorias materialistas. Esta construção se chamaria Design Inteligente. O documento estabelece ainda um plano estratégico a ser desenvolvido em cinco anos, compreendendo três fases:
1) Pesquisa, Redação e Publicação;
2) Publicidade e Formação de Opinião;
3) Confrontação Cultural e Renovação.
Como a primeira fase foi um fracasso retumbante (mesmo com generosas verbas para pesquisa), eles passaram direto para a segunda e terceira fases. Pelo menos em um ponto eles acertaram em cheio: ‘Sem argumentação e pesquisa sólidas, o projeto será apenas mais uma tentativa de doutrinar, ao invés de persuadir’.”
Ou seja, a idéia de Behe era peça chave para tentar barrar o ensino de Evolução! Uma peça fundamental em um esquema engendrado não com propósitos científicos, mas com ideais religiosos. Como os cientistas também são seres humanos, muitos deixaram de lado seus conhecimentos científicos e se deixaram seduzir pelas verbas oferecidas pelo CSC. A elaboração da tal “wedge strategy” (“estratégia cunha”) mostrou-se um plano de longo prazo, mas que necessitava da inserção no meio científico de profissionais de diversas áreas que conseguissem publicar em diversas revistas científicas artigos que fundamentassem a ideologia criacionista, a qual eles chamaram de “Fase I”. Felizmente, esta etapa do projeto não deu muito certo, o que prejudicou as etapas posteriores. Mas, mesmo assim, vemos todos os anos mais e mais estudantes universitários que são adeptos do criacionismo procurando cursos de Biologia e outras áreas da Ciência.
É lógico que nem todos os Biólogos criacionistas (a despeito da incoerência que isso represente) devem compactuar com essa idéia, mas é bem possível que boa parte deles tenha escolhido a Biologia como profissão por influência de algum líder religioso. Ou seja, a “Fase II” pode estar ainda em curso, não só nos EUA, mas também no Brasil, tentando formar futuros biólogos criacionistas, que irão ensinar essa idéia nas escolas. Não é por acaso que um programa de treinamento de Professores é parte das estratégias da “Fase II”! É o que, em conversas com outros Biólogos pelo Orkut, designamos de “Cavalo de Tróia”. O curioso foi ter cunhado o termo antes de conhecer a “wedge strategy”. A ocorrência da “Fase II” já nos saltava aos olhos antes mesmo de sabermos que ela era mesmo um plano bem elaborado.
Muitos Professores não acreditam em uma “estratégia criacionista” e simplesmente ignoram o problema. Esse pode ser um grande equívoco. Enquanto aqueles que acreditam na Ciência fecham os olhos, os criacionistas os mantêm bem abertos e prosseguem com seus planos de desmonte do pensamento científico.
* Lehman, H. E. 1987. Chordate Development, 3d ed.
** Pennock, R.T. 2003. Creationism and Intelligent Design. Annual Review of Genomics and Human Genetics 4: 143-163.
8 Comments:
ótimo texto.direto ao ponto e com um argumento bem claro para a TE.
"Nos resta perguntar: todo esse processo de formação e desaparecimento das estruturas que citamos é algo realmente “inteligente” por parte de um “desenhista”? Gastar energia tão preciosa na formação de uma estrutura embrionária inútil que irá desaparecer é algo lógico?"
Poderíamos considerar como inteligente e lógico apenas se isso servisse como mensagem clara dizendo "Olha o caminho evolucionista que foi preciso trilhar para chegar até aqui!"
Parabéns pelo excelente texto.
Além de mais um duro golpe na pseudo-ciência criacionista, serve também de alerta aos pesquisadores que, à semelhança de Richard Dawkins, procuram ignorar os seguidores da mesma. Precisamos mesmo manter os olhos abertos.
Ótimo texto! Nota 100!
Concordo com o Átila, é preciso prestar mais atenção à organização cada vez maior entre os Criacionistas.
Não bastará estar correto depois que eles maquinarem "Planos Infalíveis" ainda mais elaborados.
Olá estou entrando pela primeira neste site.Considero=me leigo no assunto.Procurei pegar o máximo que pude compreender.
Tem uma questão que me deixa muito confuso.É acerca do método de datação por carbono 14.Os criacionistas contestam os valores apresentados por este método.Eles tem base para isso.Por favor me esclarecem ou me indiquem um site que possa me trazer uma luz sobre o assunto.
Ricardo e Angela:
O carbono-14 não é usado na datação de fósseis, pois sua meia vida é muito curta (pouco mais de 5.000 anos). Esse método bastante utilizado na arqueologia, mas não na paleontologia. Na paleontologia são usados métodos completamente diferentes, como o de datação por urânio-tório. Logo, as "críticas" dos criacionistas não têm base (ao contrário do que vc pensava).
Abraço.
Por que tanto medo dos criacionistas? Eu os admiro pela fé que vocês tem de achar que o acaso é mais poderoso que o prório Deus. Se voces estiverem certos, todos morreremos e fim de debates, mas se estivere errados, espero que continuem sabendo argumentar tão bem diante de Deus. Abraços
Excelente artigo.
Viva a Ciência e a Lógica enquanto metódos de interação com a realidade.
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